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Da proteção ao pesadelo: crianças na mira da exploração sexual

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, Artigo 227 – Constituição Federal do Brasil.

Embora leis garantam proteção, a realidade de crianças e adolescentes no Brasil revela um abismo entre o papel protetor que deveria ser desempenhado e o que se presencia diariamente. Meninas e meninos são vítimas de negligência e se veem expostos a diversas formas de exploração e violência, inclusive a sexual. Em um cenário ainda mais alarmante, esses crimes, em sua maioria, acontecem dentro do próprio lar, perpetrados por aqueles que deveriam zelar por sua segurança. São pais, avós, primos, tios, amigos da família e tantos outros que falham em sua missão primordial: cuidar.

Para se ter uma ideia da gravidade da situação, a cada seis minutos, uma pessoa é violentada sexualmente no Brasil. Desse total, 61,6% das vítimas têm até 13 anos de idade. Em 2023, conforme dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 83.988 meninas e meninos foram vítimas de estupro, o que representa uma taxa de 41,4 por 100 mil habitantes. Um dado ainda mais alarmante expõe cenário preocupante: de 2011 para 2023, os índices de violência sexual contra crianças e adolescentes cresceram 91,5%.


Dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024)
Em Goiás, a Polícia Civil investiga um caso de estupro e maus-tratos contra uma menina de apenas 3 anos no município de Pontalina. O pai e o avô da criança são apontados como os principais suspeitos dos abusos, que teriam começado no início de 2024, após a morte da mãe da menina em decorrência de um câncer. Além do estupro de vulnerável, Bia (nome fictício)* ainda sofria maus-tratos. Ela foi encontrada com cáries nos dentes, era levada suja para a escola e há relatos de que ficava sem alimentação.
O caso, que chocou Goiás e o Brasil, foi denunciado após a menina aprender na escola quais partes do corpo não podem ser tocadas. A direção da unidade escolar acionou o Conselho Tutelar após a vítima relatar os estupros às professoras. Segundo a delegada responsável pelo caso, os dois homens, de 26 e 48 anos, foram presos.

Criança de 3 anos era estuprada pelo pai e avô em Goiás (Foto: Polícia Civil de Goiás)
Infelizmente, o caso de Bia é semelhante a muitos outros que não são denunciados, registrados, apurados ou informados às autoridades. Reforçando a informação de que o perigo pode, literalmente, estar debaixo do mesmo teto, dados do relatório de Segurança Pública apontam que mais de 60% dos abusadores vivem ou frequentam a casa da vítima. Outro crime de violência sexual infantil tem registrado aumento: a exploração sexual infantil, que entre 2022 e 2023 registrou aumento de 42,6%. Esses crimes também, em maioria, são praticados no ambiente de convívio da vítima.
“Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha
cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”,
artigo 241 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Ainda em Goiás, no município de Aparecida de Goiânia, outro triste caso chamou atenção recentemente. Um pai foi preso por “anunciar” a filha de 9 anos para ser abusada sexualmente por outros homens na frente dele. As investigações ainda apontam que apesar de “ofertar” a filha, o homem não cobrava pelo crime.
De acordo com a Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Civil, na negociação, ele também afirmava que estaria presente no ato. As análises dos aparelhos telefônicos apontam que não houve um acordo fechado, e não há indícios de que os estupros tenham sido consumados. Em uma das conversas, ele admitiu que já abusou da filha em outras ocasiões. Além disso, o homem mantinha imagens de crianças e adolescentes desconhecidas em situação de exploração sexual.

Pai trocava mensagens com outros homens com o objetivo de “oferecer” a filha de 9 anos para relações sexuais (Foto: Polícia Civil)
O que fazer?
Assim como a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso sexual infantil é um dos maiores desafios da segurança pública em todos os estados brasileiros. Conforme pontua a titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Aparecida de Goiânia, Sayonara Lemgruber, o desafio está em conseguir que as pessoas denunciem. Segundo ela, por serem casos que envolvem familiares, na maioria das vezes, a família prefere esconder o fato.
Como é o caso de Mariana (nome fictício)*, uma jovem de 20 anos que foi abusada pelo primo quando era criança. Em entrevista, ainda muito emocionada quando precisa falar sobre o caso, ela lembra que a mãe trabalhava como empregada doméstica em uma casa de família na cidade de Goiânia e, por isso, a menina precisava ficar na casa de uma tia fora dos horários de escola até que a genitora chegasse para buscá-la.
“Tudo começou quando eu tinha 9 anos. Lembro como se fosse hoje, minha mãe me deixava na casa da minha tia. Costumava ficar na sala assistindo televisão com meu primo,  que é dois anos mais velho, enquanto ela costurava em um cômodo da casa. Eram dias normais, até que ele começou a me mostrar vídeos pornograficos e, sob ameaça, me obrigava a tocar as partes íntimas dele e deixar que ele tocasse as minhas. Isso nunca saiu da minha cabeça e, até hoje, não tenho coragem de contar para ninguém da minha família por vergonha e medo de ser hostilizada”, relatou.
Diante do cenário em que a criança ou adolescente se encontra em uma situação de vulnerabilidade, a melhor ferramenta para se combater a violência sexual é por meio de medidas educativas direcionadas. Neste sentido, a escola desempenha um papel fundamental para que casos de abusos sejam identificados. Pensando neste cenário, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), por meio do Centro de Apoio Operacional na área de atuação da Infância, Juventude e da Educação (CAO), lançou a cartilha ‘Brincar e aprender: como proteger meu corpinho’, que tem como foco tratar, de forma lúdica, a autoproteção contra a violência sexual.
Conforme destaca a promotora de Justiça Cristiane Marques, coordenadora do CAO, o objetivo é trazer ferramentas úteis, como os conceitos de intimidade e privacidade, além da ideia da proteção às partes íntimas e de quem são os adultos de confiança. “O material foi desenvolvido para crianças entre 5 e 11 anos de idade. É um jeito de informar às crianças sobre como agir em casos como estes, de forma que elas aprendam brincando conceitos básicos de identidade”, descreveu em entrevista exclusiva à reportagem do jornal A Redação.

(Foto: reprodução/ Cartilha ‘Brincar e aprender: como proteger meu corpinho’)
Como se fosse um livro, a cartilha é dividida em diversas partes em que cada uma delas há brincadeiras diferentes como: colorir, identificar itens que compõem partes do corpo, entender formas de carinho e também quando algo parecer estranho. “A ideia é que a cartilha seja distribuída nas redes de proteção como os conselhos tutelares, Centros de Referência da Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), promotorias e ações escolares. Então, as promotorias solicitam o envio da cartilha e as enviamos”, ressaltou a promotora.
Clique aqui e acesse a cartilha completa
Ações preventivas conscientes e seus efeitos
Diante de tantas informações, a forma mais eficaz de enfrentamento às graves violações de direitos das crianças e adolescentes é por meio do prévio conhecimento sobre o assunto. Não é incomum encontrar o tema ‘abuso infantil’ abordado nas redes de comunicação, o que pode passar a falsa impressão de que esse tipo de violência corresponde a casos pontuais, rapidamente reconhecidos e enfrentados de modo eficiente. A realidade, entretanto, não é bem assim. Infelizmente.
Para Camila Nogueira, mestre em Psicologia Clínica, é fundamental trabalhar o tema de forma preventiva, conscientizando os adultos e esclarecendo as crianças e adolescentes para que consigam reconhecer situações “estranhas” que tendem a evoluir para abusos e as próprias violações. “É uma responsabilidade de todos prevenir e combater a violência sexual contra crianças e adolescentes. Um abusador identificado e punido, além de representar justiça para a vítima e sua família, pode salvar a vida de muitas outras crianças que seriam vítimas do mesmo crime”, disse.

“Vejo como essenciais as ações preventivas como esta do MP-GO, que ensinam a autoproteção como forma de combate a este tipo de violência, principalmente em formato lúdico e acessível como o da cartilha”, destacou a profissional, que trabalha no Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão em Adolescência (Cepea), da Universidade Federal de Goiás (UFG).  Nogueira ainda explica que crianças e adolescentes vítimas de violência sexual tanto na forma física, como também psicológica, podem adotar alguns comportamentos que antes não tinham.

Veja alguns dos possíveis sinais:
 Mudanças bruscas de comportamento: a criança deixa de demonstrar carinho, sendo que antes era carinhoso(a); fica agitado(a), mas antes era calmo(a); age com agressividade constante, quando anteriormente era afável, meigo(a);
Irritabilidade ou agressividade excessiva;
Comportamento arredio, desejando ficar sempre sozinho(a), pelos cantos (por vezes a reação é exatamente contrária, quando a criança tem receio de ficar sozinha, mas antes reagia bem a essa situação – a inversão do hábito de dormir só ou acompanhado é outro exemplo);
Permanece tenso(a), ansioso(a) e assustado(a), como se estivesse sempre em “estado de alerta”; Chora por qualquer motivo e com uma frequência maior do que de costume;
Regride em seu desenvolvimento, apresentando-se muito infantil para a idade (involução de vocabulário ou forma de falar; tipos de brincadeiras e jogos de seu interesse, volta a depender dos responsáveis para se locomover, volta a chupar dedo);
Permanece calado(a) e inexpressivo(a), com o pensamento distante ou tentando passar despercebido(a)/não ser notado(a);
Passa a ter dificuldades de aprendizagem e baixo rendimento escolar; Constantemente está triste, melancólico(a) e foge de contato físico;
Apresenta problemas de saúde sem causa aparente (problemas alérgicos, doenças de pele, dores de cabeça, vômitos ou outras dificuldades digestivas), que, na verdade, possuem causa emocional – doenças psicossomáticas.
Segundo a psicóloga, em lares fragilizados por violência doméstica, por exemplo, a percepção dos ‘sinais de alerta’ requer ainda mais atenção do responsável. A profissional enfatiza que o relato sobre o abuso e o pedido de socorro são expressados em linguagem não verbal ou escrita, como desenhos e pinturas com temas sombrios e cores escuras, colocando em destaque regiões íntimas do corpo.
“Qualquer sinal apresentado por crianças ou adolescentes
deve ser investigado e tratado, pois sempre haverá uma causa,
seja ela decorrente de abuso sexual ou de outra violação.
Logo que surgir a primeira suspeita de violência sexual,
o caso deve ser comunicado e investigado.”
(Camila Nogueira, psicóloga lotada no Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão em Adolescência)
Além disso, é importante saber como interagir com a vítima após ela narrar ter sofrido abusos e pedir socorro, mesmo que esse socorro não esteja expresso em palavras. Nesse momento, é muito importante que os pais e demais responsáveis mantenham-se firmes e acolhedores, oferecendo amparo à criança ou adolescente.
 Nogueira pontua que a vítima não tem que ser criticada ou desacreditada, principalmente pela pessoa que ela vê como “confiável” para narrar os fatos, pois isso poderá fazer com que perca sua confiança. A criança ou adolescente deve ser incentivada a falar sobre o abuso quando for necessário, sem o uso de qualquer tipo de coação. “Em nenhum momento, contudo, o infante pode ser obrigado a falar sobre o assunto ou questionado apenas para satisfazer a curiosidade de outras pessoas, porque isso faz com que ele reviva todo o terror do abuso, podendo criar um receio ainda maior em relatar os fatos”, enfatizou.
Denúncias e penalidades
Casos de violência infantil podem ser registrados de forma anônima pelo telefone da Polícia Civil (197), através do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), nos conselhos tutelares, e ainda nas escolas.
“Registro que os professores, responsáveis pelas instituições de ensino e profissionais da saúde têm o dever de comunicar suspeita ou confirmação de crimes contra crianças e adolescentes, sob pena de responder por infração administrativa, conforme art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, arrematou a psicóloga.

fonte: A redação

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