É extremamente preocupante a tentativa por parte de deputados federais de aprovar uma medida que os coloca em uma posição privilegiada acima da lei. Além de ser inconstitucional, essa proposição acarreta sérias consequências para a democracia republicana e a sociedade em geral. Politicamente, representa uma afronta às prerrogativas do Poder Judiciário e um ataque ao devido processo judicial, constituindo uma violação ao preceito constitucional fundamental da igualdade de todos perante a lei. No âmbito social, a implementação dessa medida resultaria na criação de uma linhagem privilegiada, com poder para autorregular a investigação e punição de crimes que porventura tenham sido cometidos.
Esta é a segunda vez que a Câmara dos Deputados busca proteger deputados de processos criminais. A primeira Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Impunidade, em 2021, buscava submeter a prisão de parlamentares à aprovação do Congresso, mas foi arquivada devido à forte reação negativa da sociedade.
A principal consequência da atual PEC da Impunidade é a proteção de parlamentares suspeitos de conspirar contra o Estado Democrático de Direito e outros indivíduos indiciados ou investigados por corrupção. Além disso, abrangeria crimes como assédio sexual, violência contra a mulher e homofobia, que já foram objeto de punição em assembleias legislativas e câmaras de vereadores, tratando-se de infrações comuns e não justificáveis pelo exercício do cargo político eletivo.
As informações disponíveis sobre o projeto indicam claramente uma busca por impunidade em relação a crimes comuns. Vale ressaltar que deputados e senadores já possuem proteção contra processos por atos relacionados ao exercício de sua representação parlamentar, como opiniões, votos e iniciativas legislativas, o que é uma salvaguarda adequada e democrática.
O objetivo da PEC da Impunidade 2.0 é isentá-los de investigações por crimes desvinculados de suas funções parlamentares. No passado, esses parlamentares defendiam a prerrogativa de foro e tentaram ampliá-la em 2019, restringindo os poderes dos juízes de primeira instância.
Diante dos inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo parlamentares, especialmente relacionados a fake news e atos golpistas, buscam agora eliminá-la para que os processos retornem à primeira instância.
Dentre as propostas em discussão na Câmara dos Deputados, destaca-se a autorização da Mesa Diretora para abertura de inquéritos, uma prerrogativa das autoridades responsáveis pelo processo judicial, representando assim uma invasão de competência além do âmbito do Poder Legislativo. Há, ainda, a proposta de quebra do sigilo de justiça, inclusive na fase de inquérito. O pretexto utilizado para tal medida seria garantir o devido processo legal e o direito ao contraditório, justificativa que se revela falaciosa.
Esse direito diz respeito à fase de julgamento, quando o indiciado se torna réu, e permanece preservado. Não deve, no entanto, ser estendido à fase de investigação, que precede a conclusão da coleta de todas as provas.
Abuso
A busca por uma imunidade ampla, geral e irrestrita por parte de parlamentares é considerada abusiva, ilegal e antidemocrática. Esse intento representa um projeto de poder e impunidade, cujo sucesso poderia resultar na subjugação das prerrogativas do Poder Judiciário. Isso é evidenciado pela mesma tendência que levou à preponderância legislativa sobre o orçamento, invadindo a esfera de competência do Executivo. O impacto institucional desse movimento é a desestruturação da organização republicana e a desorganização do processo político democrático.
Tal proposta configura uma afronta à Constituição, cujas cláusulas pétreas, imutáveis por meio de emendas constitucionais, garantem os direitos e as garantias individuais, incluindo explicitamente o direito à igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Diante disso, iniciativas que visam proteger um grupo específico da aplicação da lei e do processo judicial enfrentarão a inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF), que, sem dúvida, será provocado a se pronunciar. Essa tentativa representa, essencialmente, mais um ataque ao Poder Judiciário, uma ação deliberada de conflito entre os Poderes, perpetrada por parlamentares que temem as consequências legais de suas ações.
O exame de constitucionalidade deveria ser um obstáculo à tramitação de qualquer projeto dessa natureza na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), caso esta cumprisse rigorosamente suas atribuições regimentais. Compete à CCJ a decisão sobre aspectos constitucionais, legais, jurídicos, regimentais e de técnica legislativa de projetos, emendas ou substitutivos.
É oportuno destacar que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), antecipou a análise sobre a inconstitucionalidade da PEC, ressaltando que, embora as decisões no Parlamento sejam frequentemente mais políticas do que jurídicas, a obediência e observância da Constituição são deveres inalienáveis dos parlamentares.