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Liberação de Condenados: Implicações Potenciais da Decisão do STF sobre Posse de Maconha

Reexame na Corte sobre Descriminalização do Porte para Consumo e Avaliação de Parâmetros Distintivos entre Consumidores e Traficantes, Possivelmente Abrindo Perspectivas para Revisão de Penas em Casos de Condenação por Venda de Drogas com Quantidades Menores.

O Supremo Tribunal Federal (STF) encontra-se próximo de deliberar a respeito da descriminalização do porte de maconha para consumo. Até o momento, cinco ministros manifestaram seu apoio à medida, sendo necessária apenas mais uma manifestação favorável para sua efetivação.

O presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, agendou a retomada do julgamento para quarta-feira (6/3).

Paralelamente, a Corte está considerando a estipulação de parâmetros objetivos para a quantidade de maconha, com o intuito de distinguir entre usuários e traficantes. Defensores dessa medida vislumbram a possibilidade de redução de detenções erroneamente relacionadas ao tráfico de drogas no país.

Atualmente, os ministros Gilmar Mendes (relator da ação), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a ex-ministra Rosa Weber se posicionam a favor da descriminalização do porte para consumo. Argumentam que o uso da maconha constitui uma questão de liberdade individual e que deve ser abordado por meio de campanhas informativas e atenção à saúde dos usuários. Weber destacou que a criminalização do porte para consumo pessoal é desproporcional.

Contrariamente, o ministro Cristiano Zanin, indicado para a Corte pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, expressou seu voto contrário à descriminalização, gerando revolta nas redes sociais entre os progressistas que apoiaram a eleição do líder petista. Zanin argumentou que a descriminalização, mesmo que parcial, poderia contribuir para agravar problemas de saúde associados ao consumo de drogas.

O julgamento, iniciado em 2015, foi suspenso pela segunda vez em 24 de agosto de 2023, após o ministro André Mendonça solicitar mais tempo para analisar o caso. Outros ministros que ainda não votaram incluem Nunes Marques, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia.

Importante ressaltar que a ação em questão não aborda a venda de drogas, permanecendo esta prática ilegal, independentemente do desfecho do julgamento. Desde a sanção da atual Lei de Drogas em 2006, o crime de porte para consumo próprio não é passível de pena de prisão no Brasil.

Caso a descriminalização seja aprovada pelo STF, indivíduos portando entorpecentes para consumo próprio não estarão sujeitos a outras penalidades atualmente em vigor, como prestação de serviços à comunidade ou participação em programas ou cursos educativos, e não terão registros criminais relacionados.

Não obstante, observadores do tema indicam que este julgamento poderá impactar positivamente na redução do número de detenções no país, caso a decisão permita a libertação de pessoas erroneamente encarceradas por tráfico de drogas. Isso dependerá da eventual definição de parâmetros objetivos pelo STF para distinguir entre quantidade destinada ao consumo e aquela enquadrada como tráfico.

Defensores dessa medida, como a Associação dos Peritos da Polícia Federal (APCF) e membros da Procuradoria-Geral da República, salientam que a ausência de parâmetros objetivos tem levado à detenção de muitas pessoas com pequenas quantidades de maconha sob a acusação de tráfico. No entanto, há organizações envolvidas no processo que questionam esse efeito, discordando da avaliação de detenções equivocadas por tráfico.

Até o momento, cinco ministros manifestaram apoio à adoção de parâmetros, com propostas variando entre 25 e 100 gramas de maconha para distinguir usuários de traficantes. Cabe ressaltar que a quantidade definitiva será definida ao final do julgamento, caso haja maioria a favor da medida. Os ministros também discutem a possibilidade de estabelecer uma quantidade máxima de pés de maconha que um usuário pode cultivar.

Os ministros enfatizam que eventuais parâmetros adotados servirão como referência básica, possibilitando ao juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou enquadrá-lo como traficante, mesmo que possua quantidade menor. Isso dependerá da existência de outros elementos que corroboram a acusação de tráfico, como apreensão de armas ou balanças para pesar drogas, por exemplo. Fachin, que inicialmente foi contrário à adoção de critérios pelo STF, ainda pode revisar seu voto.

Não haverá soltura automática de presos

Atualmente, mais de 180 mil indivíduos encontram-se detidos no país sob a acusação de tráfico de drogas. A potencial abrangência de beneficiados por uma decisão decorrente deste julgamento estará sujeita à concordância majoritária no STF quanto à estipulação de critérios distintivos entre consumo e tráfico, bem como à definição específica desses parâmetros.

Entretanto, é crucial salientar que qualquer deliberação proferida pelo Supremo Tribunal Federal não resultará automaticamente na libertação de detentos, esclarece a subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, à BBC News Brasil.

Cada pessoa privada de liberdade por suposto envolvimento com o tráfico de drogas, e eventualmente influenciada pela decisão judicial em questão, terá a incumbência de interpor um recurso junto ao sistema judiciário, solicitando a revisão de sua sentença.

“Ao decidir que até determinada quantidade não configura tráfico de drogas, nos casos em que se verificar uma quantia reduzida (de substância entorpecente apreendida), as defesas sustentarão que não se configurou crime. Esta alegação será examinada caso a caso, resultando em um impacto de médio prazo”, esclarece Frischeisen.

“O impacto imediato decorrente dessa medida seria a não detenção e processamento de indivíduos portadores de pequenas quantidades, desde que não estejam presentes outros elementos indicativos de tráfico, tais como anotações contábeis relacionadas à venda de drogas, a presença de uma balança utilizada para pesar a substância comercializada, valores monetários, armamento ou munição”, acrescenta.

A adoção de parâmetros nas condições propostas pelo ministro Barroso também conta com o respaldo da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF). Embora a instituição não expresse uma posição favorável ou contrária à descriminalização do porte para consumo, sustenta a necessidade de o Supremo estabelecer critérios para distinguir usuários de traficantes.

Davi Ory, advogado que representa a associação, avalia que “o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos excessivamente amplos, transferindo à estrutura do Poder Judiciário a responsabilidade de definir quem seria usuário ou traficante com base em ‘circunstâncias sociais e pessoais’, assim como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação'”. Destaca-se que essa abordagem estaria resultando em prisões injustificadas, sobretudo de indivíduos negros e de baixa renda.

Por sua vez, o advogado Cid Vieira, representante da Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do veredicto na redução do número de detentos. A organização, que oferece apoio e orientação a familiares de dependentes químicos, foi admitida pelo Supremo como amicus curiae, atuando como colaboradora da Justiça com algum interesse social no caso, mesmo sem vínculo direto com o resultado.

“Não tenho conhecimento de que dependentes químicos estejam sob prisão. O artigo 28 da legislação de drogas atual não prevê a detenção daqueles surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma afirmação inexistente nesse contexto. O aumento ou a redução da lotação carcerária não dependerá desse aspecto”, afirmou Vieira, que concedeu entrevista à BBC News Brasil em maio.

Presos por tráfico são mais de 25% da população carcerária

Estudos indicam, contudo, que a legislação vigente sobre drogas, sancionada em 2006 durante o mandato do presidente Lula, contribuiu para o aumento do número de detenções por delitos relacionados ao tráfico de entorpecentes.

Essa lei aboliu a pena de prisão para usuários e intensificou as sanções aplicadas aos traficantes. A expectativa inicial era a redução do índice de prisões, mas, conforme afirma Pierpaolo Bottini, advogado que ocupava a função de secretário de Reforma do Judiciário no Ministério da Justiça à época, o efeito foi precisamente o contrário.

“A impressão inicial era de que isso resultaria em desencarceramento, visto que os indivíduos detidos por consumo seriam libertados. No entanto, acabou ocorrendo um aumento das prisões, pois as autoridades policiais passaram a direcionar todos os casos para o tráfico, resultando em um efeito completamente inverso”, declarou em uma entrevista à BBC News Brasil em maio de 2023.

De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase 28% da população carcerária no país encontra-se detida por delitos previstos na Lei de Drogas.

No âmbito das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 659.351 indivíduos detidos provisoriamente ou condenados no primeiro semestre de 2022 (dados mais recentes disponíveis), 182.958 estavam encarcerados por esse tipo de infração, representando 27,75% do total.

Um estudo realizado em 2023 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra de processos julgados na primeira instância judicial em todo o país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150 gramas, enquanto apenas 11,1% transportavam mais de dois quilos da substância.

Uma análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína revelou que 62,3% dos casos referiam-se a 100 gramas ou menos, ao passo que 6,8% envolviam apreensões de mais de um quilo.

Limite de 25 gramas poderia impactar 27% dos condenados por tráfico de maconha, estima Ipea

O referido estudo procedeu à estimativa do número de pessoas condenadas por tráfico de maconha ou cocaína que poderiam ter suas penas reconsideradas, caso fossem estabelecidas quantidades máximas permitidas para o porte destinado ao consumo dessas substâncias.

A análise abarcou os processos de 5.121 réus julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre de 2019, representando uma amostra representativa do total de indivíduos detidos por esse crime no país.

Conforme a pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se o parâmetro proposto por Barroso (25 gramas de maconha) fosse adotado, cerca de 27% dos condenados por tráfico de maconha teriam a possibilidade de ter suas penas reavaliadas. Se a quantidade limite fosse fixada em 40 gramas para consumo, esse percentual se elevaria para 33%.

Por outro lado, estabelecendo um parâmetro de 100 gramas, quase metade (48% dos condenados) teria a oportunidade de revisar suas penas.

Os cenários analisados pelo Ipea consideraram três opções de parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que examinou pesquisas sobre o uso de drogas no Brasil e experiências internacionais na fixação de quantidades para distinguir tráfico e consumo.

No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráfico poderiam ter suas penas reconsideradas caso o STF estabelecesse um parâmetro de 10 gramas para consumo. Se a quantidade limite fosse de 15 gramas, esse percentual aumentaria para 37%.

“Os cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal”, destaca o estudo.

Entretanto, as conclusões desse estudo não permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser libertados caso o STF adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são condenados a regimes fechados ou semiabertos, explicou a coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares, à BBC News Brasil. “Estamos realizando um novo estudo para analisar especificamente qual seria o impacto no sistema prisional”, acrescentou.

Soares ressalta que a falta de padronização no registro das quantidades apreendidas nos processos criminais dificulta essas análises. Para identificar as quantidades apreendidas com cada réu, a equipe do Ipea examinou diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério Público e as sentenças dos juízes. A “melhor informação disponível” foi selecionada em cada caso para conduzir o estudo.

Diante disso, uma das recomendações advindas da pesquisa é “o estabelecimento de um protocolo nacional para a padronização das informações de natureza e quantidade de drogas nos processos criminais”.

Entenda melhor a ação em julgamento

O Supremo Tribunal Federal (STF) encontra-se em análise de um Recurso Extraordinário com repercussão geral, cuja decisão terá abrangência para todos os casos análogos, questionando a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Esse dispositivo estipula como crime a aquisição, guarda ou transporte de drogas para consumo pessoal, bem como o cultivo de plantas com essa finalidade. Não está prevista pena de prisão para esse delito, sendo as sanções dispostas, neste caso, em “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

O recurso foi interposto pela Defensoria Pública de São Paulo em defesa de um réu detido com 3 gramas de maconha, condenado a prestar serviços comunitários pela posse da substância. A Defensoria argumenta que a legislação viola os direitos à liberdade, à privacidade e à autolesão (direito do indivíduo de tomar decisões que afetem apenas a si mesmo), garantidos pela Constituição Federal.

Ao sustentar sua posição no início do julgamento, o defensor Rafael Muneratt declarou: “Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes.”

Por outro lado, o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, posicionou-se contrariamente à descriminalização. Ele argumentou: “O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social.”

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